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Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

A crise do livro, o predomínio do audio-visual é um problema de há muito discutido, tal como a crise de valores. 

Vergílio Ferreira, no seu tom crítico, contundente, analisava-o assim:

 

Dobram os sinos pela morte do livro. E esse dobre ouve-se por todo o mundo. São múltiplas as razões desse triste acontecimento. Mas na base de todas elas está a preguiça. Não é bem um problema do tempo que um livro leva a ler, porque o tempo gasto em frente da TV dava perfeitamente  para o tempo de ler. Só que a TV e todos os meios audio-visuais apela para a nossa passividade. Na leitura há o que vem do livro e o que tem de ir em energia do leitor — memória retentiva, imaginação, atenção. De todo o modo os livros continuam a vender-se, desde as livrarias paroquiais ou de bairro às supercivilizadas dos hiper-mercados. E isto vai perdurar enquanto a cultura for um sinal de distinção e as bibliotecas privativas forem um sinal desse sinal. Porque comprar não implica o ler, excepto talvez os títulos e o de que tratam e vem na contra-capa. E é pela razão desse sinal de elitismo que se continua a ir aos concertos, quando há discos em casa ou transmissões na TV. Porque se não lê? Há um pequeno empecilho na lógica do audio-visual e é que o cinema também está a fechar as portas. Temos pois que a luta do audio-visual não é decisiva. Haverá assim outra razão que talvez se possa arranjar com eficácia. E a razão pode ser a de que já nada interessa do que deveria interessar. A "história" ou "estória" só pode funcionar a um nível infra-mental — e para isso é que existem as telenovelas. Mas acima disso quem é que vai achar que vale a pena? O escritor ideal é o que se equilibra entre o telenovelesco e o que se excede. Mas é fundamental que o não televisivo não abuse para se poderem passar as folhas desse abuso. Assim a crise do livro que merece sê-lo é ainda e sempre a crise de valores. Os grandes êxitos comerciais de romances para analfabetos são os que fazem largas concessões ao analfabetismo. Se o autor torna mais escassa a concessão, o analfabeto para as grandes tiragens fecha a bolsa. Não, não. O problema é realmente complexo com muitas entradas para essa complexidade. Mas se temos pressa para entender, entendamos que nada vale a pena. E aí cabe tudo o que se refere ao livro, ao cinema, às artes e já agora à filosofia que é um saber de estirpe. E se a morte dos valores te contende com os nervos, toma um calmante.

 

Escrever, Bertrand Editores, 2001.

 

"A Europa está no fim porque esgotou o seu reservatório de mitos. A América sobrepõe-se-lhe porque nunca os teve — ou teve apenas o mito de si própria, identificado com a eficácia pragmática. O que nos dá assim a consumir é pura exterioridade e imediatismo. Assim dançamos o rock sobre a nossa sepultura. A arte europeia desde há um século realizou-se na progressiva negação — até a negação de si mesma. A América conheceu-a e adoptou-a na pintura de um Pollock ou Tobey. Mas a essa mesma pô-la de parte para dar lugar a um Warhol, Jasper Jonhs, Rauschenberg e a outros que pela sua arte nos disseram por fim que a arte não existia. A Meca da cultura não é mais Paris ou Berlim, mas Nova Iorque. Simplesmente o ponto de partida não estava lá porque foi daqui. A América não deixou de ser o que era e a filosofia pragmática hoje vigente, nasceu lá há um século. A América é o que foi sempre, nós é que mudámos no nosso esgotamento. E é com a noite europeia que é visível o fósforo americano. Sempre a exterioridade na Europa foi uma sedução. Mas ela era o lado morno ou irresponsável, sendo a interioridade o lado responsável e respeitável. Mas quando este emudeceu teve o outro a sua oportunidade. E foi então que a América foi uma fiança visível. Nós assinalamos o espaço entre as duas guerras como o final do esgotamento. Mas isso é sobretudo assinalar com marcos de ferro uma desertificação que vinha de longe."

 

Vergílio Ferreira, Escrever, Bertrand Editora, 2001 (já depois da morte do autor).