divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira
Hélia Correia, A Terceira Miséria, Relógio d'Água, 2012, 39 páginas.
33 poemas, uma reflexão sobre a Grécia — a sua grandeza, a sua história, as suas derrotas, o estado actual.
Poema 30
Para onde olharemos? Para quem?
Certo é que Atenas se mantém oculta
E de algum modo intacta, por debaixo
Do alcatrão, do ferro retorcido.
Certo é que nunca ressuscitará
Visto que nada ressuscita.
Neste dia 25 de Abril, recordo dois poetas — três poemas: o antes e o depois de 1974
O longo sono
Depois da tempestade
o longo sono.
Os tributos. A fome. E o estrangeiro por dono
deste país que já não tem no nome
a independência da palavra liberdade.
Manuel Alegre, O canto e as armas, 1967
É preciso um país
Não mais Alcácer Quibir.
É preciso voltar a ter uma raiz
um chão para lavrar
um chão para florir.
É preciso um país.
Não mais navios a partir
para o país da ausência.
É preciso voltar ao ponto de partida
é preciso ficar e descobrir
a pátria onde foi traída
não só a independência
mas a vida.
Manuel Alegre, ib.
25 de Abril
Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo
Sophia de Mello Breyner, O Nome das Coisas.
A propósito do Dia Mundial da Água, transcrevo o poema de António Gedeão:
Lição sobre a água
Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.
É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, bases e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.
Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.
No Dia Mundial da Poesia, um poema sobre a Europa:
Limpo do Espírito o unto da Europa, e deito-o
nas feridas do ocidente para que sequem mais
depressa. A Europa impregna-me com a sua febre,
que eu acalmo com a água de um ócio de
culturas. A Europa atravanca os passeios da memória,
e obriga a empurrá-la para deixar passar
os que chegam. Às vezes, a Europa encosta-se
às esquinas, como se não fizesse nada,
e confundem-na com a puta da noite, como
se ela estivesse à venda; mas o que ela faz
é oferecer o corpo a quem quiser. De outras
vezes, a Europa é a virgem que não quer
descer do altar, como se alguém a adorasse,
ainda, e lhe acendesse as velas de uma devoção
de milénios. "Tirem-me a Europa
da frente", dizem os que querem chegar
mais depressa aos lugares que a Europa
já descobriu, e perdeu, há muito. "Quero ser
como a Europa", dizem outros — os que
andaram atrás dela, e não souberam acompanhar-lhe
o passo, e caíram no primeiro obstáculo,
vendo acumularem-se por cima de si os corpos
de quem vinha atrás. A Europa enlouqueceu,
e pede que a fechem para que ninguém mais
acredite no que ela diz. A Europa é o mocho sábio
da fábula, e as crianças juntam-se à sua volta
a pensar que vão aprender alguma coisa. Tiro
a Europa do mapa e meto-a no bolso. E quando
alguém me pedir lume para o cigarro, vou puxar
por ela e acendo-a. Se o mundo arder, a culpa é
de quem me pediu lume; se a Europa se apagar,
deito-a fora e troco de isqueiro.
Nuno Júdice, A matéria do poema, Dom Quixote, 2008.
A 16 de Março de 1993 faleceu, em Lisboa, Natália Correia.
Recordamo-la numa das suas vertentes, a poesia:
Ode à Paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália Correia, in "Inéditos (1985/1990)"
De novo o irresistível Eros,
doce-amarga, invencível criatura,
me tortura, ó Átis. E tu,
ressentida comigo,
voas para Andrómeda.
Safo - poetisa de Lesbos, séc. VII-VI a.C.(tradução de Albano Martins)
O Natal no sentir de alguns dos nossos poetas:
Natal ... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Stou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Fernando Pessoa, Cancioneiro (1933)
PRESÉPIO
Nuzinho sobre as palhas,
nuzinho — e em Dezembro! —
Que pintores tão cruéis,
Menino, te pintaram!
O calor do seu corpo,
pra que o quer a Mãe?
Tão cruéis os pintores!
(Tão injustos contigo,
Senhora!)
Só a vaca e a mula
Com o seu bafo te aqueem.
— Quem as pôs na pintura?
Sebastião da Gama
NATAL
Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.
Miguel Torga (1988)
A terminar o dia, um poema de Sophia de Mello Breyner:
Senhor se da tua pura justiça
Nascem os monstros que em minha roda eu vejo
É porque alguém te venceu ou desviou
Em não sei que penumbra os teus caminhos
Foram talvez os anjos revoltados.
Muito tempo antes de eu ter vindo
Já se tinha a tua obra dividido
E em vão eu busco a tua face antiga
És sempre um deus que nunca tem um rosto
Por muito que eu te chame e te persiga.
in Mar Novo.
VIERAM
com os galões dourados
os galos do Norte e as feras do Levante.
E tendo repartido em duas a minha carne
acabaram por se disputar pelo meu fígado
e foram-se.
"Para eles", disseram, "o fumo do sacrifício,
para nós os fumos da glória,
amén."
E o som enviado do passado
todos o ouvimos e conhecemos.
Conhecemos o som e de novo
de voz apertada cantámos:
para nós, para nós o ferro ensanguentado
e a traição triplamente urdida.
Para nós a madrugada na caldeira
e os dentes cerrados até à hora derradeira,
e o dolo e a rede invisível.
Para nós o rastejar na terra,
a jura escondida na escuridão
dos olhos, a crueldade,
sem nenhuma, nunca nenhuma Contrapartida.
Irmãos enganaram-nos!
"Para eles", disseram, "o fumo do sacrifício,
para nós os fumos da glória,
amén."
Mas tu na nossa mão a candeia das estrelas
com a tua fala acendeste, boca do inocente,
porta do Paraíso!
A vigência do fumo no futuro vemos
jogo da tua respiração
e seu poder e reinado!
de Louvado Seja (Áxion Estí), tradução portuguesa e posfácio de Manuel Resende, Assírio e Alvim, 2004.
Odysséas Elytis é um poeta grego falecido em 1995. Recebeu o prémio Nobel em 1979.
Áxion Estí, publicado em 1959, é um poema nacional no qual o poeta, inspirado na tradição, revê a história da Grécia com todas as suas vicissitudes e anseia por um renascimento. E, como ele disse no Discurso do Prémio Nobel:
"No fundo, o mundo material é um puro amontoado de matéria. A construção final depende da nossa qualidade de arquitectos. O paraíso ou o inferno. Se a poesia contém uma garantia e isto nestes tempos sombrios, é precisamente esta: que o nosso destino, apesar de tudo, está nas nossas mãos." In Posfácio a Áxion Estí de Manuel Resende.