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Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

23 de Abril — Dia Mundial do Livro

 

Alberto Manguel na sua obra "Uma História da Leitura" fala-nos do seu amor pelos livros:

 

"Depois de ter aprendido a ler as letras, lia tudo: livros, mas também avisos, anúncios, as letras miudinhas nas costas dos bilhetes de eléctrico, cartas deitadas ao lixo, jornais velhos apanhados debaixo do meu banco no jardim, grafitos, a contracapa das revistas nas mãos de outros leitores no autocarro. Quando descobri que Cervantes, na sua paixão pela leitura, lia "até os pedaços de papel rasgados na rua", fui capaz de reconhecer exactamente o impulso que o dominava. Esta veneração pelo livro ( em pergaminho, papel ou ecrã) é um dos fundamentos de uma sociedade letrada."

 

José Luís Peixoto, Livro, Quetzal, 2010, 263 páginas.

 

Com múltiplos significados, Livro é personagem, é escrita sobre literatura, é escrita do próprio livro, numa metalinguagem que, em diálogo com o leitor, nos transporta para o universo da própria escrita. O livro é ainda o elo de ligação entre personagens, é confidente, é meio de comunicação.

O narrador conta-nos uma história, localizada num ambiente rural, que se desenrola ao longo das décadas de 50 e 60 do século XX, com os problemas sociais que a envolvem, o início da guerra em África e a emigração clandestina para França. Assistimos às aventuras e tragédias das viagens nocturnas para atravessar a fronteira para Espanha e para França, às vivências nos bairros de lata dos arredores de Paris, à integração, ao regresso à terra.

Todo este ambiente envolve uma história de amor contrariado, a separação e o desencontro que a emigração provoca, o regresso e o reencontro dos antigos apaixonados.

Na segunda parte da obra, percebemos que o narrador é, afinal, um luso-parisiense que regressa às origens, procurando a integração numa terra que não é a sua, e que nos narra a história da sua família. A partir deste momento, a narrativa é de primeira pessoa, com um narrador personagem que constrói a sua narrativa em diálogo com o leitor, explicando, pelas suas vivências, um discurso mesclado de português e francês. O narrador evidencia  o seu gosto e entusiasmo pela literatura francesa, presença, aqui, talvez, do autor que se mistura com o narrador, deixando transparecer os seus gostos pessoais.

Neste desenrolar da história de uma família, chegamos aos anos 70 e ao pós 25 de Abril de 1974.

"Este livro podia acabar aqui. Ficávamos assim, no vácuo desta revelação. The end. Ou talvez não seja sequer uma revelação, talvez seja apenas um sinal da minha incapacidade de interpretar detalhes.

Tento equilibrar-me. Como dizia, entre 1960 e 1974, cerca de um milhão e meio de portugueses emigraram para França.

Cada letra e cada espaço das páginas anteriores equivale a mais de três portugueses que fizeram essa viagem. (pág.261)"

A crise do livro, o predomínio do audio-visual é um problema de há muito discutido, tal como a crise de valores. 

Vergílio Ferreira, no seu tom crítico, contundente, analisava-o assim:

 

Dobram os sinos pela morte do livro. E esse dobre ouve-se por todo o mundo. São múltiplas as razões desse triste acontecimento. Mas na base de todas elas está a preguiça. Não é bem um problema do tempo que um livro leva a ler, porque o tempo gasto em frente da TV dava perfeitamente  para o tempo de ler. Só que a TV e todos os meios audio-visuais apela para a nossa passividade. Na leitura há o que vem do livro e o que tem de ir em energia do leitor — memória retentiva, imaginação, atenção. De todo o modo os livros continuam a vender-se, desde as livrarias paroquiais ou de bairro às supercivilizadas dos hiper-mercados. E isto vai perdurar enquanto a cultura for um sinal de distinção e as bibliotecas privativas forem um sinal desse sinal. Porque comprar não implica o ler, excepto talvez os títulos e o de que tratam e vem na contra-capa. E é pela razão desse sinal de elitismo que se continua a ir aos concertos, quando há discos em casa ou transmissões na TV. Porque se não lê? Há um pequeno empecilho na lógica do audio-visual e é que o cinema também está a fechar as portas. Temos pois que a luta do audio-visual não é decisiva. Haverá assim outra razão que talvez se possa arranjar com eficácia. E a razão pode ser a de que já nada interessa do que deveria interessar. A "história" ou "estória" só pode funcionar a um nível infra-mental — e para isso é que existem as telenovelas. Mas acima disso quem é que vai achar que vale a pena? O escritor ideal é o que se equilibra entre o telenovelesco e o que se excede. Mas é fundamental que o não televisivo não abuse para se poderem passar as folhas desse abuso. Assim a crise do livro que merece sê-lo é ainda e sempre a crise de valores. Os grandes êxitos comerciais de romances para analfabetos são os que fazem largas concessões ao analfabetismo. Se o autor torna mais escassa a concessão, o analfabeto para as grandes tiragens fecha a bolsa. Não, não. O problema é realmente complexo com muitas entradas para essa complexidade. Mas se temos pressa para entender, entendamos que nada vale a pena. E aí cabe tudo o que se refere ao livro, ao cinema, às artes e já agora à filosofia que é um saber de estirpe. E se a morte dos valores te contende com os nervos, toma um calmante.

 

Escrever, Bertrand Editores, 2001.