Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

 

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia, Caminho, 2010, 456 páginas.

 

Depois da viagem de Vasco da Gama, narrada na epopeia de Camões, Gonçalo M.Tavares propõe-nos, no século XXI, a viagem de Bloom, não por mar, mas pelo ar. 

Com uma estrutura equivalente à d' Os Lusíadas (10 cantos, cada um deles com o mesmo número de estrofes do canto equivalente na epopeia camoniana), esta viagem do século XXI é, também, recheada de peripécias, de personagens que tentam impedir Bloom de alcançar o seu objectivo, de traições e ciladas, a que o herói consegue escapar, nem sempre pelos meios mais honrosos.

Mas Bloom não vai em busca de terras, não procura os bens materiais. Trata-se de uma viagem espiritual, em busca de si mesmo e em busca do conhecimento.

O Oriente é, para Bloom, a pátria da espiritualidade, é esse enriquecimento que ele procura. E as trocas que se efectuam são puramente culturais. Na mala de Bloom vão dois livros que representam a cultura ocidental: a filosofia, nas Cartas a Lucílio, de Séneca, a tragédia, no teatro de Sófocles. Roma e Grécia, as duas culturas que formaram a Europa; em Séneca, a sabedoria do filósofo, o retrato do seu tempo, a serenidade dos conselhos, o gosto pela vida calma em contacto com a natureza; no teatro de Sófocles, a tragédia humana, as leis divinas, a regra do "nada em excesso", pois a ambição humana pode causar a ira dos deuses, o mito, com todo o seu simbolismo. São estes livros, em edição raríssima, que são cobiçados por Shankra, o sábio indiano com quem Bloom se encontra. Por sua vez, Bloom deseja também uma edição antiga de uma obra representativa da sabedoria oriental, Mahabarata.

Nesta viagem vemos, não um herói perfeito, mas um homem com todos os seus defeitos e qualidades, a angústia e a procura, a insatisfação, o cansaço e o desespero, a desistência, por fim.

No meio de todas as peripécias, mantém-se a ligação ao passado, aos afectos, à família. Mais do que tudo guarda-se algo que não tem valor material, um rádio que não funciona, mas que representa mais que tudo o resto.

Bloom procura, chega à Índia, mas anseia pelo regresso a Lisboa, mesmo sabendo que ao chegar "Nenhum ódio o recebe e nenhum amor"(Canto X, 145).

"As cidades//perderam a capacidade para admirar as grandes viagens. // Bloom olha de longe para a casa onde foi feliz; e nada sente." (X,148).

Uma obra extraordinária, recheada de referências culturais e de influências de muitas outras obras (das epopeias de Homero ao Ulisses de James Joyce, cuja personagem, Bloom, aqui se repete).

As reflexões do narrador incidem sobre os mais variados temas: a ambição e a cobiça, a traição e o poder do dinheiro, a complexidade do ser humano, feito de corpo e espírito, homem que procura o céu e a santidade, mas que não se livra de cair nas piores tentações. Reflexões sobre a amizade, o amor e a solidão, sobre o mundo e o progresso da humanidade, sobre os benefícios e os malefícios da ciência e da tecnologia.

 

Bloom procurou // longe de Lisboa a sabedoria bastante para chegar // calmo ao país da calma: a Índia. // No meio do ruído dos animais contemporâneos // há que procurar algo mais: as bestas, por exemplo, // trazem outra forma de existir, um outro // estilo.  (V,73)

 

Mas a Índia tem homens e tem mulheres — disse Anish.

O ouro foi todo levado, mas por vezes parece que ainda

o querem levar de novo. As cidades

começaram a ser construídas como poemas,

mas rapidamente foram concluídas com tijolos baratos

e o sofrimento dos que trabalharam longamente

e ganharam pouco.  (VII, 30)