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Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

 

Continuando a leitura de "A Queda de um Anjo" de Camilo Castelo Branco.

 

Por fins de Janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no bairro de Alfama, por lhe terem dito que, naquela porção de Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente.

Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saíra mal-limpo, e assoviado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de Lisboa, que devia ser a ínclita Ulissea de Luís de Camões!

O deputado, sem embargo de ir habitar o quarto andar de uma casa lavada de ares e muito desafogada na rua da Procissão, quis-lhe parecer que a atmosfera da capital não cheirava bem.

Abriu um dos seus livros velhos, intitulado Do Sítio de Lisboa, etc., por Luís Mendes de Vasconcelos, e leu:

“... E assim, de todo o território de Lisboa, parece que da terra, fontes e rios respiram suavíssimos vapores, amigos da natureza humana; porque é coisa certíssima que a benignidade dos ares deste sítio não é por natureza deleitosa, pelo seu temperamento, mas de grandíssimo proveito para algumas doenças...”

Calisto Eloi fechou o livro, e disse de si para consigo, tomando uma vez de rapé:

— O meu clássico não podia mentir. Este mau cheiro é desconcerto da minha membrana pituitária...

E alcatroou segunda vez as ventas com uma pitada desinfectante.

 

A 16 de Março de 1825 nascia Camilo Castelo Branco.

Da sua notável e extensa obra recordamos "A Queda de um Anjo", de 1865.

 

A dado momento, a personagem principal, Calisto Elói, ouvindo um grupo, no qual se incluía o padre, a clamar contra o imperador romano, a propósito do martírio de S. Sebastião, exclama:

 

— Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma imperial! Os costumes de nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais de sete séculos, se emancipou da tutela das leis (alusão ervada aos vereadores de Miranda, que discreparam do intento restaurador do foral dado por D. Afonso. Vinham a ser sicofantas os colegas municipalenses.) Credite, posteri! — exclamou Calisto Éloi com ênfase, nobilitando a postura.  ...

Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao alcance das capacidades.

Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do Entrudo, exclamou:

— Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!

— Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro — observou o mestre-escola — os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos, não haveria rei nem professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação!) nem tropa, nem anatomia nacional.

O mestre-escola havia lido, repetidas vezes, no Periódico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuando as do boticário, que resmungou:

— Anatomia nacional!

— Que é?! — perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.

— Parece-me que é asneira! — respondeu o outro com certa indecisão.