divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira
Fernando Campos, A Rocha Branca, Alfaguara, Outubro de 2011, 246 páginas.
É o regresso de Fernando Campos às origens da sua formação académica — o mundo da antiguidade clássica, a língua e a cultura.
Desta vez é a poetisa Safo que inspira o autor. Num discurso cheio de poesia, com um apuro, uma delicadeza e uma riqueza de linguagem de que só este mestre é capaz, acompanhamos a poetisa Safo falando da sua vida, da sua poesia, dos seus amores.
Aliando o conhecimento histórico com a ficção, Fernando Campos descreve-nos os costumes da Grécia antiga, apresenta-nos personagens reais, mitológicas e fictícias, dá-nos a conhecer alguns poemas da poetisa de Lesbos e introduz canções da sua própria autoria. A língua grega aparece nos poemas acompanhada de tradução, dando-nos, desse modo, uma maior riqueza histórica e cultural.
Os locais são descritos em pormenor, sentimo-nos lá, presentes.
E Safo, o amor, a paixão percorrem este romance, cheio de mistérios, de crenças no sobrenatural, de poesia.
Uma leitura que encanta, que nos mostra como se pode usar a língua e a sua riqueza lexical com todo o rigor e propriedade.
O Natal no sentir de alguns dos nossos poetas:
Natal ... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Stou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
Fernando Pessoa, Cancioneiro (1933)
PRESÉPIO
Nuzinho sobre as palhas,
nuzinho — e em Dezembro! —
Que pintores tão cruéis,
Menino, te pintaram!
O calor do seu corpo,
pra que o quer a Mãe?
Tão cruéis os pintores!
(Tão injustos contigo,
Senhora!)
Só a vaca e a mula
Com o seu bafo te aqueem.
— Quem as pôs na pintura?
Sebastião da Gama
NATAL
Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.
Miguel Torga (1988)
O nosso escol político não tem ideias excepto sobre política, e as que tem sobre política são servilmente plagiadas do estrangeiro — aceites, não porque sejam boas, mas porque são francesas, ou italianas, ou russas, ou o que quer que seja. O nosso escol literário é ainda pior: nem sobre literatura tem ideias. Seria trágico, à força de deixar de ser cómico, o resultado de uma investigação sobre, por exemplo, as ideias dos nossos poetas célebres. Já não quero que se submetesse qualquer deles ao enxovalho de lhe perguntar o que é a filosofia de Kant ou a teoria da evolução. Bastaria submetê-lo ao enxovalho maior de lhe perguntar o que é o ritmo.
Fernando Pessoa, Páginas de Doutrina Estética.
Pensamentos de Heraclito, século VI-V a.C. :
"Ser sensato é a maior excelência, ser sábio é dizer a verdade e proceder de acordo com a natureza."
"Aos homens todos é dado conhecerem-se a si mesmos e saberem pensar."
De Alcméon, da mesma época:
" O homem distingue-se dos outros seres em ser o único que compreende, ao passo que os outros sentem, mas não compreendem."
O ensino requer dotes naturais e prática.
Deve começar-se a aprender em novo.
Protágoras (Abdera, séc. V a.C.) - trad. de M.H.da Rocha Pereira, Hélade - Antologia da Cultura Grega.
Como continua a ser importante a sabedoria dos clássicos!
Oh, se os ouvíssemos!
Efectivamente, aqueles que se esforçaram a aprender gramática, música e as demais disciplinas, não adquiriram vantagem alguma com relação a falar ou a deliberar melhor sobre os factos, mas tornam-se mais capazes de apreender conhecimentos mais elevados e mais sérios.
Isócrates, (Atenas, séc.V-IV a.C.), Sobre a Permuta [ trad. de M.H.da Rocha Pereira, Hélade - Antologia da Cultura Grega ]
Luís Sepúlveda, A sombra do que fomos, Porto Editora, 2009, 160 páginas.
Mais uma vez Sepúlveda recorda os tempos conturbados da sua pátria, o Chile, as lutas pela liberdade e a ditadura de Pinochet.
Quatro amigos, velhos revolucionários, militantes de esquerda, recordam os tempos de clandestinidade, os tempos de exílio, os amigos desaparecidos e a derrota dos seus ideais.
Reencontram-se passados anos, lembram a breve glória de Allende e a vitória de Pinochet com todas as suas consequências para os antigos revolucionários. E é num país agora adormecido que eles procuram reactivar a sua actividade passada, embora já nada seja igual.
Pelo meio há uma história algo rocambolesca, uma morte, uma desavença conjugal e uma investigação policial.
Um exemplo de amizade, de fidelidade aos ideais, de como sobreviver no meio da adversidade.
Um romance original, diferente, de um autor pouco conhecido entre nós. Publicado em 1961, o tema é bastante datado, situando-se na Polónia do pós-guerra, uma época de grandes transformações sociais.
Usando um discurso sarcástico, de chacota, o narrador personagem principal, fala de si e da sociedade que o rodeia, pondo a ridículo as mais variadas situações duma sociedade em mudança.
Num sarcasmo elevado à loucura, achincalha a educação e a cultura, numa crítica feroz à escola, aos professores, à cultura tradicional, aos rituais de iniciação juvenil. Uma crítica ao real, através do irreal, do grotesco, de um imaginário quase animalesco, do absurdo.
Uma crítica à ciência, através de cientistas que usam do exagero e da loucura na investigação, uma crítica à análise literária e ao seu snobismo, uma crítica ao “modernismo” duma sociedade que, saindo de uma estrutura quase feudal, procura, na adesão a coisas novas, mostrar-se diferente, “moderna”, deixar para trás o passado.
Nele perpassam personagens que, através do cómico de carácter ou de situação, nos mostram os pseudo-revolucionários, os progressistas, os NOVOS, em luta com os grandes senhores, ainda resistentes, mas em extinção, nas zonas rurais, onde os camponeses começam a ser despertados para os novos tempos.
O narrador ridiculariza-se a si próprio na forma como descreve as suas atitudes, os seus comportamentos, ele é, na realidade, não o herói, mas o anti-herói, que, como se afirma na capa, “lhe deu para gozar com toda a gente e com ele próprio, num tom fantástico, excêntrico, bizarro, à beira da mania, da loucura, do disparate”. Uma “máscara em constante formação-deformação que desanca nos ideais, no romantismo dos ideais e no ideal do não-romantismo, um anti-romance cheio de escárnio tenaz contra a saloiada da nomenclatura literária e académica, um livro perfeito de imperfeições que espatifa a postura da razão de estado da cultura, troça das formas humanas e derriça nos eternos e respeitáveis valores da civilização”, lê-se na contracapa.
De difícil leitura, de início, começa, mais tarde, a entusiarmar, depois de o leitor conseguir entrar no espírito do discurso. No entanto, peca, por vezes, na extensão das descrições e caracterizações, que ganhariam se tivessem sido reduzidas, mantendo o mesmo espírito crítico e não repetindo tantas vezes a mesma ideia.
A obra inclui, no final, uma entrevista com o autor publicada na revita [up]arte nº 1, Porto, 1995, com o título “O mundo demencial de Vitold Gombrowicz ou a razão recuperada por sonhos”.
— Vitold Gombrowicz nasceu em Maloszyce, na Polónia, em 4 de Agosto de 1904 e faleceu em Vence, na França, em 24 de Julho de 1969.