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Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

 

António Lobo Antunes, A morte de Carlos Gardel, Dom Quixote, 1994, 392 páginas.

 

Álvaro, um homem que nunca soube exactamente o que devia fazer da vida, que casa sem saber bem o que quer, que se separa da mulher porque não a suporta, por mais esforços que ela faça para para lhe agradar, que vive com uma única obsessão: a música de Carlos Gardel.

Cláudia, que vive com um jovem "que podia ser seu filho" depois da separação de Álvaro, e que, depois da morte do filho, volta para a Alemanha, onde tinha vivido em criança, em busca de uma nova vida.

Nuno, o filho de Álvaro e de Cláudia, o jovem perdido, sem rumo, que acaba no hospital, vítima das suas dependências.

Graça, irmã de Álvaro e tia de Nuno, uma médica, mulher determinada e moderna, com ideias muito próprias sobre a vida, mas também ela perdida em dúvidas sobre o que deseja para si.

Cristiana, com uma infância complicada, a amiga de Graça, não compreendida pela família, que não entende a sua opção de ir viver com Graça, e que acaba também sozinha, regressando à família.

 

Um elenco de personagens que vive de angústias, de tristezas, de recordações do passado.

 

O título é apenas uma metáfora para aquilo que é preciso deixar para trás, de modo a manter os pés assentes na terra e viver a realidade, procurando nela o que interessa a cada um.

A terminar o dia, um poema de Sophia de Mello Breyner:

 

Senhor se da tua pura justiça

Nascem os monstros que em minha roda eu vejo

É porque alguém te venceu ou desviou

Em não sei que penumbra os teus caminhos

 

Foram talvez os anjos revoltados.

Muito tempo antes de eu ter vindo

Já se tinha a tua obra dividido

 

E em vão eu busco a tua face antiga

És sempre um deus que nunca tem um rosto

 

Por muito que eu te chame e te persiga.

 

in Mar Novo.

 

Ernesto Rodrigues, O Romance do Gramático, Gradiva, Julho de 2011, 230 páginas.

 

O Gramático de que aqui se fala é Fernão de Oliveira, autor que em 1536 publicou a Gramática da Linguagem Portuguesa.

A obra dá-nos conta da vida deste escritor do século XVI, que foi frade e deixou de o ser, autor de pensamento livre, perseguido pela Inquisição. Por aqui perpassam (tomando parte na acção ou apenas referidos) outros escritores da época: Damião de Góis, António Ferreira, Fernão Mendes Pinto ...

O discurso é pesado, a estrutura é confusa, pretendendo dar um tom epocal, numa linguagem que parte muito da leitura nas entrelinhas própria de um tempo de censura, mas que é difícil de acompanhar. A narrativa dos factos é dada mais por sugestões veladas, pouco explícitas, do que por referências concretas.

Retrato de uma época, há ainda referências à peste de 1569, que levou muita gente, a D. Sebastião e aos problemas do Império.

 

Na contracapa pode ler-se " Um romance picaresco fascinante, de grande qualidade linguística e rigor histórico, pelo punho de um autor extraordinário".

 

Muito se tem citado o nosso grande Eça, mostrando a actualidade dos seus textos.

Aqui fica mais um. Falando sobre a Europa, escrevia:

 

"De sorte que, olhando em resumo para o norte e para o sul, bem podem aqueles que se distinguem por conhecer as coisas das nações sombriamente afirmar que a máquina se desconjunta, e que a situação da Europa é medonha!

E todavia, no fundo, a situação é simplesmente normal. [...]

A situação da Europa, na realidade, nunca deixou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Foi-o durante todo o século XVIII, através de mais indiferença e de uma maior doçura de vida. Tem-no sido em todos os séculos, desde que os Árias aqui chegaram, cantando os Vedas e empurrando os seus rebanhos para oeste. A "crise" é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é imperecível — a virtude e o espírito. Já o velho cronista medieval murmurava com infinita desconsolação: — "Tudo se desconjunta, e mesmo entre os homens se vai embotando a ponta da sagacidade." Já o mais velho poeta clássico, o comedido e satisfeito Horácio, cantara tristemente, quando sobre o Mundo começava a espalhar-se a imensa majestade da paz romana: — "Tudo se afunda, e, mais que nenhum outro, este tempo é fecundo em misérias."

Naturalmente não se queixavam de deficits ou de crises industriais, mas daquilo que então mais preocupava os homens cultos — o enfraquecimento da virtude, da moral, da religião, do patriotismo, da segurança pública.   [...]

Mas o que são no fundo estes lamentos? São apenas, num tom mais solene e amplo, aquele queixume familiar que cada ano redizemos, quando as folhas caem e os céus se recobrem de névoas: — "Aí vem o Inverno e a noite!"

É que a sociedade assemelha-se à Natureza. E na Europa, como em qualquer espesso bosque, num fundo de vale, um momento vem em que tudo decai e fenece: — os ramos secam e racham, os mais altos carvalhos tombam de velhice, mil podridões fermentam, o solo desaparece sob os destroços, a obscuridade aterra, um longo soluço passa no vento. E, a quem então o atravesse, o bosque afigura-se na verdade coisa confusa, arruinada e medonha. E todavia, tudo isso — é simplesmente Dezembro. É a vida; é a ordem. Das ramagens apodrecidas já se estão nutrindo as sementes que hão-de ser árvores: e através das decomposições conserva-se a seiva, que tudo fará reflorir e reverdecer, quando Março chegar. Ora estes tempos que vamos atravessando são o Outubro fusco que anuncia um dos grandes Dezembros do mundo. Temos já misérias, crises, dissoluções, velhas raízes que se despegam, prantos no vento; pior nos irá quando Dezembro vier: mas através de todas as vicissitudes sempre se conservará, como na Natureza, a eterna seiva, que é a aterna força. "  

Eça de Queirós, na Gazeta de Notícias em 2 de Abril de 1888.  in Notas Contemporâneas

 

Notícia em Jornal de Letras nº 1071, de 19 de outubro a 1 de novembro de 2011:

Dicionário Luís de Camões, organizado por Vítor Aguiar e Silva, a ser editado pela Editorial Caminho.

Obra de grande interesse, "com a colaboração de 69 especialistas portugueses e estrangeiros", composta de 206 verbetes, mais de uma centena de imagens e três dezenas de extra-textos.

 

Da entrevista com Aguiar e Silva destaque para algumas afirmações:

"A presença de Camões na escola portuguesa — penso sobretudo no ensino secundário e no ensino superior — deve ser revitalizada e renovada em termos culturais, didáticos e pedagógicos".

 

"Um 'clássico' é um escritor que, em virtude da sua beleza formal e da densidade semântica dos seus textos, gera significados e efeitos sempre novos nos seus leitores dos vários tempos, sendo moderno nas sucessivas modernidades e não ficando refém portanto da sua própria modernidade epocal."

 

Mahbob Seraji, Terraços de Teerão, Editorial Presença, Outubro de 2011, 340 páginas.

 

Uma envolvente história de amor e de resistência.

A acção passa-se entre o Verão de 1973 e o final do Inverno de 1974, envolvendo um período de aproximadamente um ano.

Assistimos ao crescimento de alguns adolescentes durante os últimos tempos da ditadura do Xá Reza Pahlavi. É impressionante a narrativa das perseguições, chocante a referência às torturas por que passam todos aqueles que, de alguma forma, não concordavam com o regime. A força da população é extraordinária, na forma como as pessoas se adaptam à situação, sem fazerem cedências quanto aos seus ideais.

É intensa a caracterização destas personagens, a descrição dos seus sentimentos, dos seus ideais. Interessante a descrição dos costumes e rituais da sua cultura.

Acima de tudo, um exemplo de como se pode crescer interiormente, resistindo a todas as adversidades, mantendo a força da honra, da dignidade, do amor à justiça, sem nunca se deixar levar pelo desânimo e muito menos pela vontade de vingança.

 

Uma frase interessante a reter: " a vida é uma série aleatória de vinhetas graciosamente compostas, ligadas superficialmente por um fio de personagens e tempo."

 

 

Marina Fiorato, A Virgem das Amêndoas, Porto Editora, 2010, 288 páginas.

 

Romance histórico cuja acção se desenrola na Itália do século XVI, tendo como uma das principais personagens um discípulo de Leonardo da Vinci.

A personagem principal é uma mulher cuja personalidade se impõe num mundo dominado por homens. É a história de um grande amor que resiste a tudo, o retrato de uma sociedade cheia de preconceitos, num ambiente de arte e de criatividade.

Destaca-se a criatividade da narrativa, a beleza das descrições, o retrato das personagens. Um livro que entusiasma e encanta. Um verdadeiro hino à arte literária.

 

 

 

António Lobo Antunes, Sôbolos Rios que vão, Dom Quixote, 2010, 199 páginas.

 

 

A estrutura é diarística, começa no dia 21 de Março de 2007 e termina no dia 4 de Abril de 2007.

Deitado na cama do hospital, o protagonista passa em revista toda a sua vida, do passado ao presente, dos familiares aos amigos. Enquanto dá conta do bulício normal de um hospital e daquilo que se passa consigo, a sua mente vai revivendo outros momentos, outros tempos que se entrecruzam com os momentos presentes, numa confusão de datas e de situações.

É um reviver dos acontecimentos que marcaram a sua vida, é a angústia do presente, neste diálogo consigo mesmo, enquanto sofre os horrores da doença e sente "um ouriço no interior do corpo" "a dilatar-se e ele a calcular as zonas que ia ocupando uma a uma"; e as imagens iam passando na sua mente em catadupa, sobrepondo-se, interpenetrando-se e ele "tentava dar nome às formas e não achava os nomes, estava e não estava acordado como quando parece compreendermos o sentido do mundo que no instante de o compreendermos se esfuma".

Um romance denso, profundo, que nos faz meditar sobre a vida, sobre o sofrimento e nos deixa, não raras vezes, angustiados.

 

O título é simbólico, lembrando as redondilhas camonianas:

          Sôbolos rios que vão

          Por Babilónia me achei,

          Onde sentado chorei

          As lembranças de Sião  

          E quanto nela passei.

Que, por sua vez, se inspira no Salmo 136:

          Junto dos rios de Babilónia

          estávamos sentados e chorando,

          lembrando-nos de Sião.

 

 

Penelope Fitzgerald, A Livraria, Clube do Autor, Agosto de 2011, 174 páginas.

 

Um livro sobre os livros, sobre o amor aos livros, sobre o interesse de uma livraria.

Uma mulher corajosa, decide, em meados do século XX, abrir uma livraria numa pequena localidade, Hardborough. Esbarra com todas as dificuldades, numa terra avessa a novidades vindas de alguém que chegou de fora. Compra uma casa antiga, velha, assombrada e cheia de humidade, consegue, a custo, um empréstimo bancário, e empreende essa difícil tarefa de abrir uma livraria e uma biblioteca. 

Retrato de uma época, numa sociedade fechada onde só alguns comandam e se opõem a tudo o que seja novo, este romance é também a prova de que, mesmo em épocas em que tal não parecia possível, as mulheres comandam a vida.

 

 

Penelope Fitzgerald, considerada uma das mais notáveis escritoras britânicas, faleceu em 2000, com 83 anos. A Livraria teve a sua primeira edição em 1978.

 

     VIERAM

com os galões dourados

     os galos do Norte e as feras do Levante.

E tendo repartido em duas a minha carne

     acabaram por se disputar pelo meu fígado

e foram-se.

     "Para eles", disseram, "o fumo do sacrifício,

para nós os fumos da glória,

     amén."

E o som enviado do passado

     todos o ouvimos e conhecemos.

Conhecemos o som e de novo

     de voz apertada cantámos:

para nós, para nós o ferro ensanguentado

     e a traição triplamente urdida.

Para nós a madrugada na caldeira

     e os dentes cerrados até à hora derradeira,

e o dolo e a rede invisível.

     Para nós o rastejar na terra,

a jura escondida na escuridão

     dos olhos, a crueldade,

sem nenhuma, nunca nenhuma Contrapartida.

     Irmãos enganaram-nos!

"Para eles", disseram, "o fumo do sacrifício,

     para nós os fumos da glória,

amén."

     Mas tu na nossa mão a candeia das estrelas

com a tua fala acendeste, boca do inocente,

     porta do Paraíso!

A vigência do fumo no futuro vemos

     jogo da tua respiração

e seu poder e reinado!

 

                        de Louvado Seja (Áxion Estí), tradução portuguesa e posfácio de Manuel Resende, Assírio e Alvim, 2004.

 

Odysséas Elytis é um poeta grego falecido em 1995. Recebeu o prémio Nobel em 1979.

Áxion Estí, publicado em 1959, é um poema nacional no qual o poeta, inspirado na tradição, revê a história da Grécia com todas as suas vicissitudes e anseia por um renascimento. E, como ele disse no Discurso do Prémio Nobel:

 

"No fundo, o mundo material é um puro amontoado de matéria. A construção final depende da nossa qualidade de arquitectos. O paraíso ou o inferno. Se a poesia contém uma garantia e isto nestes tempos sombrios, é precisamente esta: que o nosso destino, apesar de tudo, está nas nossas mãos." In Posfácio a Áxion Estí de Manuel Resende.

 

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