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Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Leituras

divulgação de livros; comentário de obras lidas; opiniões; literatura portuguesa; literatura estrangeira

Marcial Gala, Chamem-me Cassandra, Quetzal, 2023, 220 páginas.

Um rapazito cubano, que tem o dom da profecia, é o protagonista e narrador desta história.

É um rapaz franzino, com ar de menina, de quem todos fazem troça na escola. Até o pai se enfurece pela sua fraqueza, quando sofre os ataques dos colegas e não responde do mesmo modo.  É um miúdo que gosta de ler, logo na escola primária leu a Ilíada e apaixonou-se pelas histórias aí narradas e pelas suas personagens. É um jovenzinho cubano, que se sente Cassandra, a filha do rei de Tróia, que vê o futuro, mas que, tal como acontecia a Cassandra, ninguém acredita nele. Por isso ele sofre em silêncio, não revela os seus sentimentos e vive uma vida "dupla", isola-se, numa Cuba que reprime qualquer pensamento que fuja  da política e dos costumes obrigatórios. Vítima da homofobia, na escola e no exército onde sofre os abusos dos seus superiores, tudo aguenta sem protestar.

E Raulito faz-se soldado, parte para Angola (em 1975) no batalhão que vai ajudar as forças do MPLA na luta contra as da UNITA e da África do Sul. Mas ele não é um guerreiro e sabe que vai morrer em terras angolanas.

Passado, presente e futuro cruzam-se nesta narrativa; as lutas dos troianos e dos Aqueus às portas de Tróia interligam-se com os combates na mata angolana. Raul e Cassandra, os mitos, as crendices... e a Ilíada sempre presente.

Marcial Gala, natural de Havana, é considerado "um dos mais brilhantes narradores das Américas" e este é (como se lê na contracapa) um livro "lírico e histórico ao mesmo tempo", "um romance de iniciação e identidade".

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Annie Ernaux, Os Anos, Livros do Brasil, 2020, 196 páginas.

Os anos passam e trazem consigo grandes mudanças: mudanças na sociedade, na política nacional e internacional, nos costumes, grandes transformações ao nível científico e tecnológico que vão interferir com as nossas vivências do dia-a-dia.

Os anos da segunda metade do século XX e inícios do século XXI são férteis em mudanças de toda a ordem e quem viveu esses anos guarda na sua memória momentos de grande espanto, de extraordinário entusiasmo, que se ligam também a tempos de angústia, de sofrimento, tempos de grandes entusiamos e de esperança num futuro melhor e tempos de descrença, de desalento, de desilusão.

São esses anos que Annie Ernaux nos traz neste livro. Desde o final da segunda guerra mundial até aos dias de hoje, perpassam na sua memória as recordações desses anos que vão desfilando.

Um livro que cativa por uma narrativa diferente, partindo sempre da observação de uma "gravação" de um momento que conduz o fio da memória e traz ao presente esses tempos, pessoais e sociais, do país e do mundo, da política ou da música, das manifestações juvenis e do vestuário... um desfilar dos anos...

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"Annie Ernaux constrói uma recordação de um "nós", num relato sobre o que fica quando o tempo passa" (da contracapa)

Isabel Rio Novo, Madalena, D. Quixote, 2022, 199 páginas.

Madalena é uma professora, ainda jovem, a quem foi diagnosticada uma doença oncológica. Enquanto passa parte dos dias em consultas e em tratamentos, passa o tempo em casa, isolando-se, não conseguindo enfrentar os olhares e as opiniões de família e amigos, procurando examinar a realidade da sua vida, e do seu fim anunciado. Tentando fugir à realidade, ocupa-se, até se tornar uma obsessão, a examinar papéis de família, documentos do passado. Assim descobre os seus antepassados, os bisavós e, sobretudo, a sua bisavó Madalena, uma mulher bem à frente do seu tempo.

Numa narrativa em que os tempos se cruzam, a narradora dá voz às personagens do passado, alternando as histórias antigas com a sua vida presente. Desse modo são dois mundo diferentes que se apresentam, uma evolução de mentalidades, de vivências sociais, de valores.

"Muito mais do que uma narrativa sobre a doença ou os seus efeitos sobre o indivíduo, Madalena é um romance notável sobre a família e sobre o que, em cada um de nós, é construído pelos que viveram antes" - lê-se na contracapa.

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Jennifer Saint, Ariadne, Minotauro, 2022, 400 páginas.

Para os amantes de mitologia grega, este é um livro aconselhado.

O mito de Ariadne, a filha do rei de Creta, Minos, aquela que deu a Teseu o novela que o conduziria à saída do Labirinto depois de ter vencido o Minotauro, é aqui a narradora desta história.

Pela voz de Ariadne as personagens do mito tornam-se vivas, com as suas angústias, com os seus medos e a sua coragem, numa narrativa em que a voz feminina nos dá uma perspectiva diferente, mais humana.

Aqui as mulheres não são seres passivos, elas pensam, observam e criticam, ainda que não possam agir abertamente. No entanto, estas mulheres manifestam os seus sentimentos, revoltam-se contra as injustiças, contra a tirania, tecendo estratagemas para alcançar os seus objectivos.

Muitas outras mulheres são aqui apresentadas, as mães, as amantes, as guerreiras que lutam por si e pelos seus filhos.

E o amor é o motor da história. Presente em toda a obra é a relação entre as duas irmãs, Ariadne e Fedra, que se apoiam em todos os momentos, e que apenas a traição de Teseu acaba por separar.

É o primeiro romance da autora, uma estreia auspiciosa, que nos faz ansiar por outras histórias.

"Sabem, eu era uma rapariga de apenas dezoito anos, com a sorte de ainda poder chamar-me tal coisa. Tinha levado uma vida protegida, velada e escondida atrás de muros altos. Tive a sorte de o meu pai me ter mantido como um prémio que ainda casaria; de não me ter trocado por uma aliança estrangeira, enfiando-me num navio com destino a terras distantes para espalhar a sua influência, vendida como um animal estúpido no mercado." - p. 41

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Charlie Jonas, Café de Gatos, ASA, 2020.

Ler é aprender. Um livro leva-nos de viagem para outros mundos, outros ambientes, outras culturas. Embrenhados na leitura, viajamos, vemo-nos a residir naquele local, convivemos com as personagens, sentimos com elas. Um livro é um companheiro.

É a leitura de bons livros, de bons autores, que leva ao nosso enriquecimento como pessoas, que nos torna mais humanos, na medida em que contribui para o nosso enriquecimento intelectual, aumenta a nossa cultura geral.

Mas leitura é também distracção, lazer, um momento de fuga da rotina quotidiana que, sem deixar de nos enriquecer, nos afasta da tristeza, das notícias tristes e desagradáveis dos  meios de comunicação, mostrando-nos um mundo mais cor-de-rosa onde todos os finais são felizes.

O Café de Gatos é um desses livros. Leve, agradável, com situações mais tristes, mas também situações de humor descontraído, com histórias de amor, que não escolhe idades, com finais felizes para todos.

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Charlie Jonas é o pseudónimo de uma jornalista alemã, que gosta muito de gatos...

Carlo Levi, Cristo Parou em Eboli, Livros do Brasil, 2022, 239 páginas.

"Pequeno conjunto de casinhas empilhadas sobre um precipício de argila branca, Gagliano surge aos olhos de Carlo Levi, naquela tarde de agosto de 1935, como uma terra às portas da civilização, da História, da humanidade." — isto se lê na contracapa.

Livro de memórias, relato histórico, sociológico, com um misto de ficção, este livro retrata a vida de uma comunidade de camponeses do sul da Itália, durante o regime de Mussolini, com a sua pobreza extrema, a sua resignação, as suas crenças ancestrais e o complexo da sua inferioridade, do abandono a que estão votados, ali, tão distantes de Roma, dessa Roma que nada lhes diz, onde vivem uns "senhores" que tudo decidem e com os quais eles nada têm a ver.

Nesta distante vila esteve o autor exilado ("confinado") em castigo pelas suas ideias políticas de oposição ao fascismo, aqui conviveu com estes camponeses nos anos de 1935 e 1936, lembrando, anos depois (1945), toda esta gente, num relato fascinante, de grande humanismo, uma descrição pormenorizada de uma região, de uma época. "Nós não somos cristãos", dizem os habitantes. "Cristo parou em Eboli"

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Annie Ernaux, Um Lugar ao Sol, seguido de Uma Mulher, Livros do Brasil, 2022.

Seguindo a tradição, comprar o último livro do ano, este foi o último de 2022, adquirido no final de Dezembro e lido em dois dias.

Foi, para mim, a revelação da autora, Prémio Nobel da Literatura de 2022.

Uma interessante narrativa que, em tom autobiográfico, nos faz um retrato da sociedade francesa de uma época, os anos que se seguiram ao final da 2.ª Guerra Mundial. Um relato que passa pela descrição das dificuldades de uma família e de uma pequena comunidade de província, o trabalho, as formas de vida, as ambições, ou não ambições, a posição da mulher na sociedade, os desejos de ascensão social. Trata-se de uma realidade, sem eufemismos, sem metáforas; é, no fundo, a narrativa de vidas reais, desde os sacrifícios dos pais para que os filhos tenham uma vida diferente, a afirmação da educação, de um curso superior como meio de ascender na escala social, mas também as angústias que isso gera em quem se vê e sente diferente e não enquadrado, estranho agora, quer no meio de onde saiu, quer no meio onde ingressou. Um verdadeiro retrato de uma época e da evolução política, económica e social.

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Lídia Jorge, Misericórdia, D. Quixote, 2022, 457 páginas.

Depois de uma longa ausência deste blogue, não ausência de leituras, mas ausência de registo dessas leituras, trago aqui hoje um dos últimos livros que li no ano de 2022.

Este é, para mim, um dos mais belos livros de Lídia Jorge. Dedicado à mãe, falecida em 2022 devido à Covid 19, é um livro de homenagem à idade, aos idosos e à forma como vivem os seus últimos anos.

Tratando um tema tão actual e tão inquietante, ele é, contudo, um relato de vida, cheio de humor e de humanidade.

Os hóspedes do "Hotel Paraíso", eufemismo para "Lar de Idosos", formam uma pequena comunidade que replica o viver em sociedade, agora numa sociedade mais fechada, mais reduzida. O relato da protagonista, mesmo nos acontecimentos mais tristes e trágicos, é feito com tal naturalidade, com uma boa disposição tão cativante que nos arrebata pela forma como encara os reveses do dia a dia, nesse seu último ano de vida. Deste modo, retratando uma realidade  brutal na sua, por vezes, crueldade, o tom irónico e a espantosa humanidade de algumas personagens transportam-nos para um ambiente de paz e de esperança, longe de nos causar angústia. Tristeza e alegria, riso e dor interligam-se nesta narrativa que nos arrebata até ao final das suas mais de 400 páginas.

"Misericórdia é um dos livros mais audaciosos da literatura portuguesa dos últimos tempos. Como a autora consegue que ele seja ao mesmo tempo brutal e esperançoso, irónico e amável, misto de choro e riso, é uma verdadeira proeza." - lê-se na contracapa.

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Armando Lucas Correia, A Filha Esquecida, TOPSELLER, 2019, 301 páginas.

O horror da guerra e da perseguição nazi,  o sofrimento das crianças e o trauma que as perseguirá para a vida, estes os temas centrais desta narrativa de um tempo tenebroso, com o qual a humanidade parece não ter aprendido.

Aqui encontramos as hediondas perseguições aos judeus, a fuga e a não segurança, seja em que parte do mundo for. A obra mostra-nos como a crueldade humana não tem limites e como a obediência cega a um poder louco pode transformar o mais inocente ser num criminoso. Vemos o sofrimento das crianças, tornadas adultos sofredores depois de presenciarem o horror, e a coragem de uma mãe que tudo faz para salvar as suas filhas.

E o passado, adormecido, mas não esquecido, volta, muitos anos depois, para trazer à memória as dores e sofrimentos enterrados no mais fundo da alma.

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Donatella di Pietrantonio, A Filha Devolvida, Edições ASA, 1.ª edição 2019, 200 páginas.

Título original, L' Arminuta, 2017.

Como se pode sentir uma criança que, depois de criada por aqueles que julga seus pais, fica a saber, aos treze anos, que os seus pais biológicos são outros e é "devolvida" sem qualquer explicação?

Este livro é o relato ferido, pungente, da revolta de quem perde o amor e carinho a que estava habituada. O que é o amor de mãe e como se manifesta? Qual a relação entre os afectos e a falta do essencial para sobreviver?

Sentimentos desencontrados perante uma nova realidade completamente outra, diferente, triste, sem afecto, este é também o encontro da amizade e camaradagem entre duas irmãs que de desconhecidas se tornam inseparáveis e se protegem uma à outra. Retrato da miséria e de como lidar com ela, como aprender a desenvencilhar-se perante as amarguras, é, assim, um romance da vida, dos momentos felizes e dos momentos infelizes, da alegria e da tristeza, seja qual for a situação sócio-económica. É também o reconhecimento do estudo e da inteligência, do valor do saber.

"A filha devolvida" — como a mentira e o abandono na infância, a falta de amor, o carinho dos pais podem constituir um trauma que nunca será superado.

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